“Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio” ( O Estrangeiro, Albert Camus)
Com estas palavras se encerra o livro “O Estrangeiro” de Albert Camus, talvez uma das mais perfeitas alegorias já criadas sobre o absurdo da existência humana. O livro foi rotulado por muitos como um dos mais importantes representante da corrente existencialista, que crescia em influência sobre os intelectuais da Europa após a 2° Guerra Mundial, mas Camus insistia em dizer que sua obra se focava apenas no absurdo da condição humana.
Muito do desencanto presente no livro vem das experiências vivenciadas pelo autor, nascido em 1913 na Argélia em uma família pobre viveu sua juventude em uma realidade cercada de miséria e guerras. Formou-se doutor em filosofia com uma tese sobre Santo Agostinho e durante sua vida cultivou uma estreita amizade com o filósofo existencialista Jean Paul Sartre.
O Estrangeiro é considerado até hoje sua obra máxima, um livro desconcertante e inovador. Camus optou por dividir sua história em duas partes. Narrada em primeira pessoa pelo obscuro Mersault a primeira metade do livro mostra as atitudes e o comportamento desprovido de emoções da personagem principal e as reações adversas que esse comportamento gera nas pessoas a sua volta, enquanto a segunda parte mostra as conseqüências geradas por essas atitudes e a punição exigida pela sociedade a esse tipo de comportamento, numa construção simples na relação crime/castigo.
A narrativa tem início com Mersault anunciando a morte da mãe, um estranho completo para o leitor, que durante toda a obra não terá nenhuma informação adicional sobre o passado da personagem. Logo nas primeiras linhas nos causa desconforto as atitudes de Mersault em relação a morte da mãe, sua indiferença, sua frieza e a maneira prática com que trata a organização de sua agenda para a cerimônia do funeral. Conseguir o dia de folga , almoçar, obter uma gravata preta, viajar oitenta quilômetros e voltar de luto.
Durante o funeral seu comportamento desperta estranhamento, desprezo e até uma certa repugnância a todos que observam incrédulos a figura de um homem indiferente a morte da mãe.
Mersault culpa o sono e na realidade não vê nenhum problema em suas atitudes. Em nenhum momento ele cede as pressões sociais a ponto de simular emoções que não sente. Crítica forte e poderosa é feita nesse primeiro momento do livro. Quando choramos a morte de alguém será que estamos realmente exprimindo nossos sentimentos ou apenas nos comportando como nos é socialmente recomendável?
Até que ponto nossas emoções não são sugestionadas por pressões externas da sociedade?
Talvez o grande incômodo causado em nós por Mersault seja sua transparência, sua sinceridade inabalável e seu total distanciamento das pressões exercidas pelas relações sociais a sua volta, uma espécie de liberdade moral, mas que é conduzida por ele através de uma apatia silenciosa, sem nenhum tipo de revolta, apenas uma aceitação do absurdo que o cerca.
Um dia após o enterro de sua mãe ele se aproxima de Maria, e inicia uma relação baseada no sexo, reagindo ao lado sentimental deste relacionamento com desdém. Mesmo sua relação com o vizinho Raimundo é regida por uma ordem prática, Mersault opta por ajudar seu vizinho ao testemunhar sobre uma briga entre este e uma amante àrabe apenas por conveniência, sem possuir motivos para negar o pedido ele o aceita e esse simples gesto desencadeia a tragédia que conduz ao segundo momento do livro.
Mersault e Raimundo, durante um passeio de fim de semana, se encontram em uma praia com o irmão da amante agredida e após um primeiro conflito onde o árabe fere Raimundo, Mersault retorna a praia e por causa do forte sol quente, em um momento de delírio, atinge com um tiro o estrangeiro.
Sem nenhuma explicação Mersault se aproxima do árabe caído e deflagra mais quatro tiros, talvez no único momento de catarse emocional vivida pela personagem durante toda a obra de Camus. Neste instante percebemos que o único momento realmente passional da história acontece pelo efeito do Sol quente que afeta a racionalidade de Mersault e libera um instinto primitivo de agressão e ódio.
A partir desse ponto tem início a segunda metade do livro que se ocupa de oferecer a Mersault o castigo pela sua falta de sentimentos. A jogada de mestre de Camus neste momento é focar a ação de todos os personagens envolvidos no julgamento, não no crime cometido e assumido por Mersault, mas em uma condenação baseada na falta de sentimentos demonstrada pelo réu no enterro de sua mãe.
Os advogados de defesa e de acusação, o juri, as testemunhas e até o padre que visita Mersault na cadeia, todos tentam forçar sem sucesso uma reação emocional da personagem exigindo dela uma resposta passional, mesmo que simulada, à morte da mãe. Camus critica abertamente a hipocrisia presente na emoção em conflito permanente com a racionalidade ao mostrar que o assassinato neste ponto já não era relevante e que o juri funcionava como um grande teatro farsesco para condenar o niilismo de Mersault.
Durante toda a narrativa sentimos um profundo incômodo com a prosa seca de Camus. As linhas seguem de forma direta e sem rodeios e todo o livro passa a impressão de cenas repletas de silêncio e em tons pastel como se a realidade superexposta pelo autor viesse morta. Percebemos no final as intenções do autor que não nos diz nada sobre o futuro de Mersault, porque no final isto não importa.
O que incomoda é percebermos que o tal “Estrangeiro” do título, não é aquele assassinado no meio da obra, mas sim Mersault - que utiliza sua visão impar despida de sentimentos para nos mostrar em primeira pessoa o absurdo do existir.
Esmagado pelas pressões sociais em um mundo que lhe parece absurdo, a resposta de Mersault é a indiferença. O amor, a amizade, o medo da morte enfim nenhum sentimento é extravasado apenas aceito como inevitável. O julgamento estabelecido pela narrativa não é de atos e sim de valores.
O livro termina brilhantemente com a suposta condenação do réu, deixando uma insatisfação geral e um nó na garganta. A obra imbatível de Camus nos convoca em suas linhas finais, como último desejo de Mersault, a executarmos com gritos de ódio o estrangeiro do título.
Texto publicado originalmente em minha coluna sobre cultura no site http://www.atibaianews.com.br/
2 Comentários:
vc vai me dizer que não, mas de qualquer modo, aí vai:
vc contou a história toda, pô!!
achei super interessante e mto bem escrito o texto... seqüência de idéias coerentes, mas virou um resumão... contando mesmo a história, ao invés de instigar a leitura.... afinal, no final das contas a maioria dos leitores procura um livro pela sua história... a linha que conduz o enredo e que, eventualmente, possui discussões filosóficas, políticas e/ou existenciais.
bom texto, japa!
abraço!
e "afinal, no final das contas" ficou uma bosta, hahahahha
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