“Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo e pensamenteando sempre o gosto dessa comida. O nobre, o simples, não direi o divino, mas humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada. O som calou-se, e "fui à vida", como ele gosta de dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma companhia, uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação.
(Carlos Drummond de Andrade)
Não imagino como falar sobre Cartola sem recorrer à fluidez de um dos seus; gênios das artes, párias, convivas, mestres cada qual em sua universidade. Peço a licença poética ao poeta e utilizo sua veia de cronista para abrir este texto.
Carlos Drummond de Andrade escreveu uma bela crônica sobre Cartola para o Jornal do Brasil, texto publicado em 27 de novembro de 1980, três dias antes da morte do sambista que não resistindo a um câncer no estômago nos deixava aos 72 anos de idade.
Ler Cartola nas palavras de Drummond é para mim um deleite. Fã do escritor e do músico é impossível refrear a sensação de que a autoridade de Drummond é necessária para falar da grandeza de Cartola.
Angenor de Oliveira viveu uma vida errática e apesar de iniciar suas composições na década de 30, somente nos anos 70 conseguiu atingir sua fase áurea trazendo à luz “O Mundo é um Moinho”(no fim deste texto), “As Rosas Não falam”, “Acontece”, “Cordas de Aço” entre outras pérolas da música popular brasileira.
Em sua simplicidade, a música era para ele fluída, natural, sangue nas veias e ar nos pulmões, quase abdicou do sucesso(não da genialidade) ao desaparecer, literalmente, do cenário musical. Certamente entre um cafezinho e outro, entre uma cachaça e um cigarro continuava a criar sambas no seu pinho enquanto tirava o sustento de trabalhos braçais mal remunerados. Uma coisa é certa, existe um buraco negro na década de 50, aonde Cartola havia sido tragado, e como a Mangueira deve ter sido mais triste!
Em alguns momentos me sinto orgulhoso de minha profissão. Sempre tem um jornalista curioso em algum lugar e dizem que foi Sérgio Porto, conhecido como Stanislaw Ponte Preta, o sujeito feliz que pode se orgulhar de ter feito um bem imenso à música nacional ao encontrar e convencer Cartola, então lavador de carros, a voltar a compor e gravar.
Não sei da instrução de Cartola, se teve ensino médio ou fundamental correspondente a sua época, só sei que ler suas letras é como ler Drummond, um exercício de deleite e regozijo.
Todos que escrevem por hobby ou por paixão, por necessidade ou carreira sabem como é complexo o uso das palavras, como às vezes nos foge vernáculo e vocábulo e nada parece encaixar para tornar um bom texto em um texto especial. Imagine ter esse dom de forma espontânea como Garrincha driblar, Elis cantar ou Muhamed Ali lutar...Super-heróis com super poderes.
Segui palavras vivas que buscam meticulosamente seus lugares para despertarem emoções, assim é para mim, ler Cartola e ler Drummond. Pessoas capazes de imaginarem o mundo como moinhos, abismos cavados com os pés, rosas que roubam o perfume da mulher amada(no caso sua musa Dona Zica), de olhar o sentimento e pensar: “Acontece!”. Marcar um dia no futuro para abandonar a mulher impossível de rejeitar no dia de hoje.
Minha sincera homenagem aos 30 anos sem Cartola celebrados em novembro de 2010 e assim como abri este texto recorrendo ao brilhantismo de uma crônica de Drummond encerro com um pequeno trecho de uma de suas poesias mais famosas e que imediatamente me recordo sempre que imagino como se sentia Cartola com seu violão no colo:
“Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo...”
Não Canso de ouvir...
O Mundo é um Moinho
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho.
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés
1 Comentário:
Olá,
Achei essa postagem enquanto procurava conteúdos sobre o Cartola. Interessante a postagem!
Abraços,
Lu Oliveira
www.luoliveiraoficial.com.br
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